A
estiagem é um fenômeno da natureza. A fome, a miséria e a morte daí
decorrentes, porém, são produtos da ação humana e das políticas
dirigidas a essas regiões e populações. Não são, portanto, fenômenos
naturais. A seca é política
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por Naidison de Quintellla Baptista, Antonio Gomes Barbosa, Alexandre Henrique Bezerra Pires
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(O Semiárido brasileiro já conta com mais de 700 mil cisternas para o consumo humano)
Chuvas
irregulares e mal distribuídas são características do Semiárido.
Significa chover em alguns lugares mais que em outros e que nem sempre
as águas que caem são suficientemente armazenadas para atender às
necessidades das pessoas. Quando esse processo se intensifica, há as
grandes secas. Desde 2010 o Semiárido brasileiro passa por uma das
maiores secas dos últimos trinta anos.
Segundo
a Agência Estadual de Planejamento e Pesquisa do Governo de Pernambuco,
nesse estado a lavoura do milho decresceu 80,4%; a do feijão, 70,3%; as
lavouras temporárias, 11,7%; e a pecuária, 28,4%. Outros dados, da
Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI), mostram que a
Bahia diminuiu em 44,4% a lavoura do feijão; 23% a da mandioca; e 8,1% a
do milho. De acordo com o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica
do Ceará (Ipece), a agropecuária diminuiu em 20,11%.
Esses
fatos geram impactos em toda a economia e prejudicam a todos: os ricos e
os pobres, os grandes e os pequenos. No entanto, são os sem-terra, os
agricultores familiares, os mais pobres que sofrem perdas irremediáveis,
que colocam em risco seus rebanhos, suas sementes, suas famílias e sua
própria vida. Os testemunhos e constatações nesse campo são publicados a
cada dia e são irrefutáveis. No Brasil, de cada dez famílias de
agricultores que vivem no meio rural, cinco estão no Nordeste, sobretudo
no Semiárido. Portanto, a desestruturação é sentida diretamente nas
economias locais. E, globalmente, todos sentimos esse fenômeno na
elevação do preço dos alimentos.
Um fenômeno político
Nesse
contexto, algo é evidente: a estiagem é um fenômeno da natureza. A
fome, a miséria e a morte daí decorrentes, porém, são produtos da ação
humana e das políticas dirigidas a essas regiões e populações. Não são,
portanto, fenômenos naturais. A seca é política.Por isso, é importante
avaliar as estratégias e políticas que se dirigem ao Semiárido. Para
tanto, vamos utilizar reflexões a esse respeito publicadas pela
Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). A rede afirma que a seca atual,
embora ainda contenha em si as mazelas e injustiças do projeto político
da indústria da seca, “traz consigo outro viés que tem tornado a
população mais capaz de resistir, de ser cidadã e deixar de ser
manipulada”.1
A
existência de uma população com tais características só é possível
quando associada a processos de convivência com o Semiárido. Para a ASA,
estase estrutura na posse da terra e na ideia de resgate e valorização
dos conhecimentos e potencialidades de agricultores e comunidades, na
construção de inovações sócio-organizativas de produção, de economias
baseadas na solidariedade e na participação.
No
entanto, para que a convivência com o Semiárido se torne paradigma
dominante na região, máxime nas políticas, será preciso, primeiro,
derrotar a hegemonia do combate à seca.
Nesse sentido, a ASA destaca:
“No
Brasil e no Semiárido, as secas sempre foram oportunidade fértil para
as oligarquias aumentarem suas posses de terras, se locupletarem dos
recursos públicos, conseguirem, com recursos públicos, obras vultosas e
caras para beneficiar suas propriedades e de seus comparsas políticos,
enraizarem seu poder político à custa da miséria da população, exposta
em filas à busca de gotas de água e migalhas de alimentos. Aliadas a
esse quadro, as secas expulsam de suas terras e de seu torrão natal
centenas de milhares de cidadãos do Semiárido...
A
oligarquia e os políticos dela oriundos e a ela ligados sempre
explicaram esse fenômeno como algo de responsabilidade da natureza,
esquecendo-se, intencionalmente, das decisões políticas deles próprios e
dos governantes. Creditam, assim, à natureza aquilo que é
responsabilidade e resultado das decisões políticas”.
Reconhecendo os avanços e limites do que está sendo feito hoje, a ASA afirma:
“Efetivamente
muitas políticas e programas se espalham pelo Semiárido, tornando-o, de
certo modo, diferente, mais humano, mais adequado à convivência com o
clima e suas intempéries...
Eis alguns exemplos:
O
Bolsa Família, acrescido do Bolsa Estiagem, enquanto ações
emergenciais; a extraordinária malha de captação de água construída no
Semiárido através das cisternas, resultado da ação de vários parceiros
que com isso se envolveram, especialmente a ASA e o governo federal;
essa malha, contando com mais de 700 mil cisternas de consumo humano,
armazena milhões de litros de água outrora desperdiçados e o faz de
forma democrática e desconcentrada; a malha de captação e distribuição
de água para produção e dessedentação de animais, através das mais
variadas tecnologias sociais; as adutoras e processos semelhantes de
abastecimento da população.
As
ações do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e de compra da
alimentação escolar (Pnae), que estruturaram propriedades, criaram e
enraizaram bancos de sementes e processos de armazenamento de grãos e
sementes; o crédito destinado à agricultura familiar e os processos de
assistência técnica, embora ainda carentes de uma adequação mais radical
à realidade do Semiárido e agroecologia e carentes, igualmente, de uma
radical desburocratização; os processos agroecológicos implementados,
especialmente em razão da teimosia de ONGs.
Todos esses processos fizeram que o Semiárido estivesse um pouco mais preparado para esta seca... e atravesse-a com vida digna”.
No
entanto, se todos esses elementos são importantes e fundamentais, é
estratégico deixar claro que esses processos ainda não são políticas
universalizadas e, por isso, a miséria e a fome perpassam o Semiárido
neste momento.
Enquanto
elemento estruturante e essencial para efetivação da plena convivência
com o Semiárido, a ASA é enfática sobre a urgente necessidade de
enfrentar o problema do acesso à terra na região. Para tanto, destaca:
“Em
todo tempo, mas especialmente numa época de seca, é perceptível a
necessidade de uma reforma agrária eficiente e adequada ao Semiárido,
para garantir terra para as pessoas viverem e trabalharem [...]. O
governo, no entanto, teima em ignorar esse problema. Efetivamente, ou se
disponibiliza o acesso à terra ou milhares e milhares de famílias do
Semiárido nunca terão as efetivas condições de conviver com o Semiárido,
porque lhes faltará o espaço necessário para guardar a água, produzir e
armazenar alimentos, criar animais, plantar”.
Indo
além, constata-se que a convivência com o Semiárido está direta e
umbilicalmente associada à cultura do estoque. Estocar é uma estratégia
que muitas famílias da região já praticam e que precisa ser ampliada e
incentivada. Por isso, o limite da terra impede a convivência e a vida
no Semiárido.
A convivência na prática
A
ASA, ao falar em cultura, política e estratégia de estoque, expressa a
necessidade de que a assistência técnica, o crédito, as infraestruturas e
todas as ações desenvolvidas com os agricultores na região explicitem e
dinamizem essa perspectiva. Essa não é uma dinâmica nova na humanidade,
mas uma característica principalmente de regiões em que as condições
para plantio são temporais e exigem estratégia de manutenção e
armazenamento de alimentos.
Aqui,
ao dar relevo a essas estratégias, estabelecemos uma relação com o que
vem fazendo a ASA em parceria, sobretudo, com o Estado brasileiro e a
cooperação internacional:
1)
Estocar água para os períodos de poucas chuvas. Os programas Um Milhão
de Cisternas Rurais (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da ASA, têm
garantido as condições mínimas das famílias terem acesso à água para o
consumo humano e para a produção. Atualmente são mais de 700 mil
famílias com água para o consumo humano, o que corresponde a
aproximadamente 3,5 milhões de pessoas. Alegra-nos constatar que a
proposta de cisternas da ASA se transformou no Programa Cisternas do
governo federal, que busca atender a 1,25 milhão de famílias e, por
conseguinte, contemplar 6,25 milhões de pessoas.
2)
Selecionar e estocar as melhores sementes nativas para o plantio nos
anos seguintes e armazenar também para o consumo. Essas práticas
garantem às famílias camponesas um forte grau de soberania sobre sua
produção e seu alimento, além de preservar os conhecimentos locais e
possibilitar a construção de relações solidárias, gerando autonomia e
consciência político-organizativa, e fortalecendo as redes locais de
troca e produção de conhecimentos e material genético. Hoje, em razão do
trabalho de centenas de organizações, estão estocadas em casas
comunitárias de sementes dezenas de variedades de sementes agrícolas
crioulas. É essa prática que ainda tem preservado as sementes crioulas
da contaminação dos transgênicos e de outras iniciativas do agronegócio
que degradam os conhecimentos tradicionais e a biodiversidade.
A
instalação de uma unidade da Monsanto, uma das dez maiores empresas
multinacionais de produção de agrotóxicos e sementes híbridas, na cidade
de Petrolina, no Semiárido pernambucano, constitui forte ameaça à
agricultura familiar camponesa na região. Iniciativas dessa natureza
dialogam com um modelo de desenvolvimento rural ultrapassado quando
olhamos as dimensões da sustentabilidade, uma vez que está baseado na
dependência de insumos, no esgotamento dos recursos naturais e na
degradação socioambiental.
Esse
tipo de investida, que conta com apoio do Estado brasileiro, segue na
contramão de uma necessidade planetária de mudança no padrão de produção
e consumo, que permita minimizar as mudanças no clima e como
consequência os impactos nas populações mais vulneráveis, entre as quais
aquelas do Semiárido brasileiro. Também se torna contraditório na
medida em que outras estratégias são percebidas, como é o caso da
criação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica
(Pnapo).
3)
Estocar alimento para os animais valorizando o cultivo e uso de plantas
da Caatinga é algo também significativo. São várias as estratégias
adotadas pelas famílias, desde o cultivo de espécies como palma e
mandacaru, essenciais para a manutenção dos rebanhos. As práticas mais
comuns são os campos de proteínas com espécies forrageiras e o manejo
sustentável da Caatinga, assim como as práticas de armazenamento com o
feno e o silo.
4)
A criação de raças adaptadas ao clima e às necessidades das famílias
integra também as preocupações relacionadas às condições de viver e
produzir no Semiárido. No entanto, não é difícil encontrar iniciativas,
muitas delas com financiamentos públicos, que estimulam a criação de
raças de animais com origem em climas não semiáridos, sob a alegação de
melhoramento genético.
5)
Outra iniciativa estratégica na convivência com o Semiárido e que tem
gerado transformações para muitas famílias na região são os Fundos
Rotativos Solidários (FRS). Esses fundos, cuja gestão é feita pelos
próprios grupos e associações locais, têm possibilitado o acesso rápido e
desburocratizado a pequenos recursos que são utilizados principalmente
para incrementos de infraestruturas produtivas: melhoria de cercas,
bombas para pequenas irrigações, melhoria dos currais dos animais,
equipamentos para criação de abelhas, equipamentos para beneficiamento
da produção, máquinas para produção de forragem, entre outras
necessidades. Esses recursos, em sua maioria oriundos de apoios
internacionais, têm possibilitado uma maior participação das mulheres,
sobretudo nas atividades econômicas da produção familiar. Esse tipo de
iniciativa econômica favorece a construção de laços de solidariedade
entre as pessoas, organizações locais e comunidades, de modo que a
inadimplência no repasse dos recursos é insignificante do ponto de vista
percentual. O governo, no entanto, atua com enorme resistência quando
se trata de ampliar essas experiências e nelas injetar recursos.
Muitas dessas práticas de convivência com o Semiárido estão registradas nos boletins O Candeeiro,
ferramenta de comunicação utilizada pela ASA para disseminar esses
conhecimentos, assim como na plataforma “Agroecologia em Rede”, um
sistema de informação sobre iniciativas em agroecologia de iniciativa da
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
A
história é dialética. Desse modo, importa perceber o significado desse
conjunto de estratégias de convivência com o Semiárido, todas simples,
acessíveis, protagonizadas pelas famílias agricultoras e que contam, em
muitos casos, com o apoio dos governos; importa reconhecer os avanços no
campo das políticas públicas para a agricultura familiar camponesa. No
entanto, isso é muito pouco. Assim, é preciso questionar profundamente
iniciativas que vão de encontro a esses processos, como a continuidade
de investimento em grandes obras no Semiárido, em sua maioria
excludentes e que reproduzem as políticas de combate à seca, entre as
quais a transposição do São Francisco; questionar o financiamento de
projetos que degradam a biodiversidade e esgotam os recursos naturais;
questionar a omissão do governo no que se relaciona ao problema do
acesso a terra; questionar o persistente modelo de assistência técnica
que desvaloriza os conhecimentos locais e apregoa a dependência de
insumos químicos, assim como a falta de investimentos em uma matriz
energética que preserve os recursos naturais e biológicos e iniciativas
que colocam em xeque a soberania alimentar e nutricional da população do
Semiárido e sua autonomia política nas decisões sobre caminhos para uma
vida com mais dignidade.
Naidison de Quintellla Baptista
Educador,
secretário executivo do Movimento de Organização Comunitária (MOC) e
coordenador executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)
Antonio Gomes Barbosa
Sociólogo e coordenador do Programa P1+2: Uma Terra e Duas Águas, da Articulação do Semiárido Brasileiro/ ASA
Alexandre Henrique Bezerra Pires
Biólogo,
mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local pela Universidade
Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenador-geral do Centro de
Desenvolvimento Agroecológico Sabiá.
Ilustração: Hans Vou Manterffel / Arquivo ASA |
segunda-feira, 15 de abril de 2013
A estiagem e a seca em um novo contexto do Semiárido brasileiro
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